AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ REALMENTE ABSTÊM-SE DE SANGUE?
Carlos M. Silva, 29 de outubro de 2003
“As Testemunhas de Jeová prezam a vida e a consideram uma dádiva de Deus. Em harmonia com Atos 15:29, elas se abstêm de sangue.” – Anuário das Testemunhas de Jeová, 2002, pág. 111
A declaração acima, apesar de paradoxal, representa o conceito comum que as pessoas têm sobre as Testemunhas de Jeová. Não há dúvida que há na Bíblia uma lei sobre a abstenção de sangue, mas o que dizer dos critérios que a Sociedade Torre de Vigia dos EUA – entidade dirigente das Testemunhas de Jeová – adota sobre essa lei?
Componentes do sangue que são permitidos
Como talvez saiba, ao contrário de antigamente, hoje a Torre de Vigia deixa a cargo da consciência dos adeptos aceitar ou não certas frações derivadas de sangue. Essas frações são obtidas através de um processo chamado fracionamento. Alguns derivados do plasma são:
· Concentrado de Fator VIII· Concentrado de Fator IX· Complexo de Anti-Inibição de Coagulação (AICC)· Albumina· Imunoglobulinas· Concentrado de Anti-Trombina III· Concentrado de Inibição Alfa 1-Proteinase
Às vezes argumenta-se que os componentes do sangue permitidos pela Sociedade Torre de Vigia dos EUA são frações do sangue muito pequenas, e por isso podem ser usadas (A Torre de Vigia não costuma usar termos tais como “proibimos isso ou aquilo”. Ela diz que essa ou aquela decisão depende da consciência do cristão. Mas isso é uma falsa colocação, pois se ela proibir alguma coisa, não importa se sua consciência permita ou não tal coisa – nem que a Sociedade acabe adquirindo a mesma opinião que você já tem! [há casos assim]. Ou seja, quem manda mesmo é a Torre, e não a consciência de seus adeptos. Portanto, quando se usam, neste texto, expressões tais como “a Sociedade proibia”, ou “A Torre de Vigia não permite”, elas estão em perfeito acordo com a realidade). Mas tome como exemplo a albumina, que é um componente do sangue permitido pela Sociedade. Sabe a porcentagem que ela ocupa no sangue? Cerca de 2,2%. Esta porcentagem é muito maior do que a porcentagem dos componentes que a Sociedade proíbe, como os glóbulos brancos (1%) e as plaquetas (0,17%). Qual é a lógica que permite 2,2%, mas proíbe 0,17%? Então, fica claro que o que determina esse critério de proibição não é o fato de uma substância sangüínea ser ou não ser bem pequena.
A Sociedade ensina que os componentes do sangue permitidos estão apenas limitados àqueles que passam através da barreira da placenta durante a gravidez e que, baseando-se nisto, uma Testemunha pode aceitá-los de consciência tranqüila. Raciocina-se que se Jeová permite que estes componentes sangüíneos passem da mãe para o feto, é sinal de que Ele não está violando a sua própria lei. Isso até que tem lógica, mas o problema é que a ciência médica está descobrindo que praticamente todos os componentes do sangue passam através da barreira da placenta.
Existem também vacinas e remédios que são feitos à base de sangue, que a Sociedade também os permite. Sabe como se obtém os remédios à base de sangue permitidos? Observe:
· Albumina: para se obter 600 gramas de albumina é preciso uns 45 litros de sangue que não foi ‘derramado no solo’, conforme a orientação bíblica, mas sim armazenado. (a albumina é usada para tratar queimaduras graves).
· Imunoglobulina: é dessa substância que se faz a vacina contra a cólera e muitas Testemunhas de Jeová já foram vacinadas com ela. Para se fabricar uma única injeção é preciso 3 litros de sangue. Este sangue, mais uma vez, é doado, armazenado e processado para produzir os produtos sangüíneos aprovados pela Sociedade Torre de Vigia dos EUA.
· Crioprecipitado Anti-Hemofílico AHF: é a porção do plasma que é rica em certos fatores coagulantes, incluindo Fator VIII, fibrinogênio, Fator von Willebrand e Fator XIII. O AHF é removido do plasma através de congelação e depois descongelação lenta do plasma. (É usado para prevenir ou controlar hemorragias em indivíduos com hemofilia tipo A, doença de von Willebrand, e anomalias hereditárias na coagulação).
· Preparados hemofílicos (Fator VIII e IX): o tratamento eficaz para um hemofílico requer uma substância chamada Fator VIII, que ajuda na coagulação e é feita a partir do sangue retirado de muitos indivíduos. São necessários cerca de 9000 Kg de sangue total para produzir uma única dose de 0,1 grama de Fator VIII. Uma pessoa que sofra de hemofilia grave necessita normalmente de várias doses por ano.
Além dos itens descritos acima, há outros remédios derivados do sangue que são permitidos pela Torre de Vigia: imunoglobulina da hepatite B [HBIG] (usada para tratar e prevenir a hepatite B), imunoglobulina do tétano (injeção contra o tétano), imunoglobulina da Raiva [RIG](usada para tratar e prevenir raiva), imunoglobulina RhO [RhoGam](administrada a mães Rh negativo para prevenir doença hemolítica do recém nascido), anti-trombina III (usada para tratar deficiência na anti-trombina III), e imunoglobulina humana [HIG] (usada para tratar e prevenir, dentre outras coisas, a hepatite tipo A).
É lógico pensar que aceitar essas substâncias significa aceitar parcialmente o sangue. Talvez seja por isso que o órgão dirigente das Testemunhas de Jeová vez ou outra use a expressão “o mal uso do sangue” (A Sentinela, 15/06/91, p. 15, § 9). Ora, se o sangue for derramado no solo, ele não terá nenhuma utilidade; não se fará nenhum uso dele.Então, quer dizer que o sangue pode ter outra finalidade, além de ser ‘derramado no solo’? Pelo visto, fabricar remédios a partir do sangue é um ‘bom uso dele’, contrariando a opinião oficial da Torre de Vigia de que todo sangue que sai do corpo deve ser ‘derramado no solo’, conforme a Lei mosaica.
Relato de um suposto tratamento sem sangue
Uma evidência de que a Torre aprova o uso parcial do sangue, se encontra na Despertai! de 22 de outubro de 1992, p. 12, no artigo “Tratamento sem sangue salvou-me da morte iminente”, onde relata o caso de um membro da sede mundial das Testemunhas de Jeová. Ele conta que um médico da Filial da Torre de Vigia lhe administrou eritropoietina (EPO) que, segundo o narrador, é “um hormônio sintético que estimula a medula óssea a produzir glóbulos vermelhos em ritmo acelerado” (p. 13, § 1). Sabe como se obtém a EPO? A descrição “hormônio sintético” deixa a impressão de que não se trata de algo relacionado com o sangue, talvez por isso muitas Testemunhas de Jeová a utilizem. No entanto, note o que a própria Torre de Vigia diz sobre a EPO:
“Atualmente, usa-se também uma pequena quantidade de albumina em injeções do hormônio sintético EPO (eritropoetina).” – A Sentinela, 1º de outubro de 1994. p. 31.
O estimulante de glóbulos vermelhos EPO mencionado pela Torre de Vigia é feito com uso da proteína sangüínea conhecida como albumina, que é sintetizada a partir de sangue que não foi ‘derramado no solo’, e sim coletado, armazenado e processado. Portanto, o título correto da Despertai! citada acima deveria ser: “Tratamento quase sem sangue salvou-me da morte iminente”.
Quando a EPO começou a ser utilizada, todos os laboratórios que fabricavam a eritropoetina sintética usavam albumina na sua composição. Hoje em dia, porém, certo laboratório afirma que está produzindo EPO sem o uso de albumina (atualmente é o mais utilizado por Testemunhas de Jeová aqui no Brasil). Interessante que a imprensa internacional divulgou recentemente que a EPO desse laboratório está causando certos problemas imunológicos em alguns pacientes, versão que foi rechaçada tanto pelo laboratório como por alguns profissionais de saúde. Não há informação se o suposto problema tem haver com a ausência de albumina. Portanto, não se pode afirmar aqui que as duas coisas tenham relação entre si, nem que o problema realmente existe. De qualquer maneira o ponto importante a salientar é que a Torre aprova o uso da EPO, mesmo ela sendo feita com albumina.
Da mesma forma que alguns medicamentos hoje disponíveis de fatores VIII e IX (preparados hemofílicos), a EPO é produzida através de técnicas de engenharia genética. Na primeira menção que a Sociedade fez da EPO ela não deixou claro a sua forma de obtenção, apenas disse: “Recentemente foi aprovada, para uso limitado, uma promissora droga medicamentosa chamada eritropoietina recombinante. Ela acelera a produção de hemácias pelo próprio corpo, ajudando efetivamente a pessoa a produzir mais do seu próprio sangue.” (Despertai!, 22/10/1990, p. 13. Vide também a brochura Como Pode o Sangue Salvar sua Vida, p. 15). O termo recombinante se origina da idéia de recombinar geneticamente o DNA de certas substâncias gerando proteínas que permitam alcançar os mesmos efeitos que suas correspondentes naturais. Em outras palavras, é reproduzir artificialmente o que natureza produz. No que se refere à albumina sintética (EPO), a albumina humana é utilizada para estabilizar o preparado. O motivo de haver grande interesse em se fabricar proteínas sintéticas é que as correspondentes naturais não podem ser produzidas em grande quantidade, pois elas representam uma pequena fração do sangue total. Em virtude dessas técnicas de engenharia genética, muitos sonham de uma dia haver um sangue totalmente artificial.
Ainda sobre os preparados hemofílicos, a Associação da Torre de Vigia (denominação brasileira) sabe muito bem que para obtê-los é preciso muito sangue, e mesmo assim os aprova:
“Cada lote de Fator VIII é fabricado do plasma coletado de até 2.500 doadores de sangue.” (A Sentinela, 1.º de outubro de 1985, p. 23. Veja também a Despertai!, 8 de outubro de 1988, p. 11).
Muitas pessoas esclarecidas que não são Testemunhas de Jeová, mas que conhecem o ensino das Testemunhas, têm chamado a atenção da Torre de Vigia sobre a posição embaraçosa dela permitir o uso separado de todos os componentes que foram aqui citados, mas proibi-los juntos. Se pegarmos todos esses componentes, juntá-los e adicionarmos água, o resultado será o plasma, que é proibido pela Torre. É como disse certo comentarista, especializado no ensino das Testemunhas de Jeová: “Faria sentido proibir alguém de comer um sanduíche, mas permitir que ele o abra e coma todas as partes separadamente?” (carne, alface, maionese etc.). Em qual base se determina esses critérios de proibição? Certamente, não é na Bíblia, pois ela não aborda tais assuntos.
O aleitamento materno e os leucócitos
Como já foi dito, a Torre de Vigia simplesmente se baseia num conceito já ultrapassado de que só alguns componentes do sangue passam pela barreira da placenta e chegam até o bebê que está na barriga de uma gestante. Mesmo que esse conceito científico fosse o correto, e já não tivesse sofrido atualização, o que determina que ele deva ser utilizado pelo cristão? Mais contundente do que a barreira da placenta, porém, é o mecanismo de aleitamento materno.
Pouco depois do nascimento de uma criança, aproximadamente no segundo dia depois do parto, uma substância chamada colostro, um soro branco, é produzido pela mãe e transmitido ao bebê através da amamentação. Segundo os especialistas “a secreção do colostro continua durante cerca de uma semana, com uma conversão gradual para leite maduro”. Dentro do colostro e no leite humano há anticorpos, imunoglobulinas e outros elementos que são transmitidos à criança para que ela desenvolva resistência à doenças, tais como componentes de complemento, macrófagos, linfócitos, lactoferrina, lactoperoxidase, dentre outros. Macrófagos, também chamados de monócitos, são células do sistema reticuloendotelial que se movem no corpo e ingerem, por fagocitose, microorganismos, células mortas e outros resíduos. Os monócitos são os mesmos glóbulos brancos encontrados no sangue, também chamados de leucócitos. Existem outros tipos de glóbulos brancos, são eles: eosinófilos, linfósitos, neutrófilos e basófilos. Resumindo, dentro do leite humano há substâncias sangüíneas, substâncias estas terminantemente proibidas pela Torre de Vigia! – Conceitos de Biologia, de Amabis e Martho, Ed. Moderna, Vol. 2, pp. 287, 292; Pelos caminhos do Sangue, de Rogério Nigro, Ed. Atual, p. 34.
O leite materno contém mais leucócitos do que se pode encontrar em uma quantidade equivalente de sangue. O sangue contém cerca de 4.000 a 11.000 leucócitos por milímetro cúbico, enquanto o leite de uma mãe pode conter, durante os primeiros meses de aleitamento, até 50.000 leucócitos por milímetro cúbico. Isto é de cinco a doze vezes mais do que a quantidade presente no sangue! Lembre-se que a Torre não aprova o uso de leucócitos.
No aleitamento não está envolvida uma transfusão de sangue. A criança é alimentada por via oral com leite que contém substâncias sangüíneas. Ao se recorrer ao tipo de analogia que a própria Torre de Vigia faz, nota-se que Deus não está infringindo a sua própria lei por ter feito o homem um mamífero, que suga para dentro do estômago, nos primeiros meses de vida, alguns elementos do sangue materno junto com o leite, tais como os leucócitos. Portanto, se comer leucócitos não é pecado, por que transfundi-lo seria?
Consegue perceber que um padrão de entendimento está começando a surgir? Por que Jeová criou o corpo humano de uma forma que aparentemente faz com que sua lei não seja respeitada? Ou seria porque a Torre de Vigia não está entendendo essa lei corretamente? Segundo ela, uma transfusão é o mesmo que comer sangue, e é essa equivalência que gerou a proibição:
“Abster-se do sangue na nutrição do corpo é tão necessário como abster-se da fornicação e da idolatria.” – A Sentinela, 15/03/86, p. 18, § 11.
“Toda vez que se menciona a proibição de sangue nas escrituras é com relação a tomá-lo como alimento, e assim, é como nutriente que nos interessa a sua proibição.”– A Sentinela, 1/02/59, pp. 95 e 96 (Vide CD-ROM Biblioteca da Torre de Vigia, em inglês).
Por volta de 1960, a Torre de Vigia aprendeu que o sangue transfundido não é digerido, mas é retido no corpo de forma muito semelhante a um órgão transplantado. (Comer sangue envolve o sistema digestivo, e recebê-lo por transfusão envolve o sistema cardiovascular). Mesmo com esse entendimento, a proibição das transfusões foi mantida, mas foram sendo permitidos cada vez mais produtos sangüíneos, se tomados separadamente. Se receber sangue é um pecado semelhante à fornicação, como é que a Torre admite a pessoa receber apenas uma parte desse sangue? Já ouviu falar que só um pouco de fornicação é aceitável? Não existe meio termo, ou algo é pecado ou não é. Admitir o uso parcial do sangue entra em conflito com a suposta posição adotada de “se abster de sangue”.
Descrevendo de forma simplificada, para conseguir obter nutrição a partir do sangue, seria necessário comê-lo e digeri-lo, para poder decompô-lo e usá-lo como alimento. Não há benefício nutritivo de uma transfusão de sangue. A Torre de Vigia tem tentado contornar este fato argumentando que receber uma transfusão não é diferente de ser alimentado intravenosamente com dextrose ou álcool. Tais comparações são questionáveis, pois o açúcar e o álcool podem realmente ser usados pelo corpo como alimento, sem digestão. O sangue transfundido não pode ser usado pelo corpo como alimento, da mesma forma que um coração transplantado não pode ser usado como alimento.
Considere dois pacientes que estão incapacitados de comer, e dão entrada num hospital. Se durante vários dias, a um deles for aplicadas transfusões de sangue e ao outro for dada alimentação pela veia, qual deles estará se alimentando e sobreviverá? Logicamente, o que receber a transfusão não viverá; morrerá de fome! É por isso que os médicos não aplicam transfusões de sangue para tratar a desnutrição. A transfusão é administrada para substituir algo que o corpo perdeu, geralmente os glóbulos vermelhos que são necessários para transportar oxigênio e manter a pessoa viva.
Como transfusão de sangue não é o equivalente a comer sangue, perde-se o “elo crítico” que seria necessário para apoiar biblicamente a posição da Sociedade Torre de Vigia a respeito do sangue.
A dúvida que afetou a vida de pessoas
“Embora este médico argumente a favor do uso de certas frações do sangue, particularmente albumina, estas também estão sob a proibição das Escrituras.” (Despertai!, 8 de setembro de 1956, p. 20 [em inglês]).
Estão sob “proibição das Escrituras” ou proibição da Torre de Vigia?
Como pode perceber, o que a Torre hoje permite [albumina], antes ela proibia. Embora se trate de um assunto que envolva vidas humanas, ela evidenciou, ao longo dos anos, que não tem certeza dos detalhes restritivos que ensina. Mesmo assim ela gosta de brincar de ser Deus afetando a vida dos outros. As frações sangüíneas eram proibidas, depois foram permitidas, depois foram proibidas novamente, e depois foram outra vez permitidas:
1) Despertai!, 1º de fevereiro de 1956, p. 20: frações proibidas.2) A Sentinela, 1º de fevereiro de 1959, pp. 95 e 96: frações permitidas.3) A Sentinela, 15 de março de 1962, p. 174, §§ 16, 19: frações proibidas.4) A Sentinela, 15 de julho de 1963, p. 443: frações proibidas.5) A Sentinela, 15 de outubro de 1974, p. 640: frações permitidas.6) A Sentinela, 1º de dezembro de 1978, p. 31: frações permitidas.
Se você pesquisar as publicações antigas da Sociedade Torre de Vigia, notará que posições vacilantes também foram adotadas sobre os transplantes de órgãos e as vacinas. Considerava-se transplante de órgãos o mesmo que canibalismo, por causa da mesma linha de raciocínio sobre as transfusões de sangue, ou seja, colocar o sangue de uma pessoa em outra é o mesmo que se alimentar. (Qualquer notícia que a Sociedade encontrasse desfavorável ao transplante, publicava sem reservas). Disse a Torre de Vigia:
“Notar que a posição das testemunhas cristãs de Jeová — de que tais transplantes são efetivamente uma forma de canibalismo — provaram ser uma salvaguarda” (Despertai!, 08/01/73, p. 28).
Como sempre, a transferência de responsabilidade é o expediente padrão adotado. Uma opinião da Torre de Vigia é descrita como a opinião das Testemunhas de Jeová em geral. Faz-se ainda a arriscada afirmação que se abster de um transplante é sempre benéfico.
Depois que a Torre aprendeu que essa analogia (transplante-canibalismo) não é correta, abandonou essa posição, mas somente no que tange aos transplantes de órgãos sólidos, e embora o sangue também seja um órgão (líquido), a Sociedade o excluiu do novo critério adotado. É a velha prática de dois pesos e duas medidas.
No que diz respeito às vacinas, o rigor era ainda maior. Nas publicações mais antigas, entre 1920 e 1945, que não estão disponíveis no CD-ROM da Torre de Vigia, adotava-se uma posição altamente rigorosa sobre às vacinas, identificando-as com o Diabo e seus agentes. Publicações mais recentes também proibiam o uso de vacinas derivadas do sangue, que hoje são permitidas. – A Idade de Ouro, 1/05/29, p. 502; A Sentinela, 15/12/52; Despertai!, 08/04/70, p. 4; A Sentinela, 01/06/70, p. 347; A Sentinela, 01/03/76, p. 135.
Mais um exemplo revelador
Considere outra circunstância, a que envolve a bomba coração-pulmão. Num artigo da Sentinela, a Torre de Vigia proibiu explicitamente o recolhimento de sangue antes da operação para uma transfusão autóloga (ou seja, usando o próprio sangue do paciente), mas permitiu outro procedimento:
“Num processo um tanto diferente, o sangue autólogo pode ser desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise (rim artificial), ou para uma bomba coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Alguns cristãos têm permitido isso, caso o equipamento não seja escorvado (posto a funcionar) com sangue estocado. Eles têm encarado a tubulação externa como uma extensão de seu sistema circulatório, de modo que o sangue possa passar através de um órgão artificial. Têm considerado o sangue nesse circuito fechado como ainda parte deles, não necessitando ser ‘derramado’.” (A Sentinela, 1/03/1989, p. 30). – note o velho jogo de palavras: “Alguns cristãos têm permitido isso...”, quando, na verdade, o que o escritor quer dizer é: “A Torre de Vigia tem permitido...”.
Não é difícil perceber que a lógica que permite a bomba coração-pulmão também permite que se armazene o próprio sangue, se fosse permitido estabelecer esse critério de julgamento. Afinal, o único argumento contra o armazenamento do sangue vem de uma regra na Lei de Moisés que dizia que o sangue de um animal que era morto fosse derramado no chão. (Deuteronômio 12:24). Conforme diz o mesmo comentarista mencionado anteriormente, “seguir a regra demonstrava que a pessoa entendia que a vida do animal provinha de Deus”. Portanto, é evidente que tais raciocínios baseados na Lei mosaica não se aplicam às transfusões de sangue autólogo, porque ninguém morre quando é feita uma transfusão deste tipo. O sangue é devolvido à pessoa da qual foi retirado.
Conclusão
As Escrituras são muito claras em afirmar que não se deve ir “além das coisas que estão escritas” (1 Coríntios 4:6). Todo esse conjunto de normas sobre qual fração sangüínea pode ou não pode ser usada, fere claramente o princípio citado por Paulo. A Bíblia não contempla esses detalhes, e ninguém está autorizado a fazer acréscimos às Escrituras. Além do mais, a proibição das Escrituras refere-se a usar o sangue como alimento, em respeito à vida que foi tirada para suprir a necessidade de nutrição de quem a tirou. Nenhum grupo de homens está autorizado a estabelecer regras proibitivas que só Deus seria capaz de fornecê-las, nem de afirmar presunçosamente que tais regras são orientações que descem da parte de Deus, pois Dele só desce “toda boa dádiva e todo presente perfeito”, e não orientações vacilantes que podem prejudicar a vida das pessoas. Cada cristão, mesmo um líder religioso, deve seguir o seguinte princípio: “Não pense mais de si mesmo do que é necessário pensar”. – Tiago 1:17; Romanos 12:3.
Portanto, leitor, o ensinamento da Sociedade Torre de Vigia dos EUA que tem tido maior notoriedade junto ao público externo, parece que precisa de uma séria revisão. É claro que muito do que a Torre de Vigia publicou sobre os perigos do sangue, e o abuso que alguns fazem dele, é basicamente correto (embora assim como há pessoas que morrem ao receber sangue, há muitas outras que sobrevivem). No entanto, essas ponderações não tem nada a ver com o preceito bíblico de se abster de sangue; apenas desvia a atenção do foco principal, a saber, que comer sangue não é o mesmo que uma transfusão, e que a proibição da Bíblia se refere a se alimentar do sangue de um animal que foi morto para servir de alimento.