A Sociedade Torre de Vigia encoraja as Testemunhas de Jeová a ir bater às portas das casas das pessoas e também a falar com elas informalmente para lhes levar "as boas novas do Reino". Parte dos esforços delas a este respeito envolve tentar fazer as pessoas questionar e analisar criticamente as suas próprias crenças e organizações religiosas. Durante o processo de conduzir um "estudo bíblico", as Testemunhas de Jeová referem-se a todas as outras religiões coletivamente como Babilônia, a Grande, o império mundial da religião falsa. A parte de Babilônia, a Grande, que recebe a atenção mais crítica é a cristandade.
A Sociedade Torre de Vigia identifica o clero da cristandade com o "homem que é contra a lei" mencionado na Bíblia. As Testemunhas de Jeová descrevem os elementos do clero como sendo desprovidos de princípios, mentirosos, enganadores, egoístas, teimosos, amantes do dinheiro e pedófilos. Os leigos são retratados como ignorantes, cegos, vítimas enganadas pelo clero. A culpa por praticamente todos os males da sociedade moderna, desde o declínio moral até ao crime, passando pelas duas guerras mundiais, é lançada sobre a cristandade.
Ocorreu-me um pensamento quando estava a ler A Sentinela de 15 de março de 1996. Tem a ver com o que está escrito nas páginas 16 e 17, parágrafo 9, no artigo "Como passar na prova da lealdade":
"Passamos agora a tratar do assunto de se ser leal à organização visível de Jeová. Nós certamente devemos lealdade a ela, inclusive ao "escravo fiel e discreto", por meio de quem a congregação cristã é alimentada espiritualmente. (Mateus 24:45-47) Suponhamos que apareça nas publicações da Torre de Vigia algo que não entendemos ou com que não concordamos no momento. O que faremos? Ficar ofendidos e abandonar a organização? Isto foi o que alguns fizeram quando, há muitos anos, A Sentinela aplicou o novo pacto ao Milênio. Outros ressentiram-se do que A Sentinela certa vez disse sobre a questão da neutralidade. Se aqueles que tropeçaram por causa destes assuntos tivessem sido leais à organização e aos seus irmãos, teriam esperado que Jeová esclarecesse esses assuntos, o que ele fez no tempo devido. De modo que a lealdade inclui esperar até que o escravo fiel e discreto publique entendimento adicional."
A parte que diz: "Outros ressentiram-se do que A Sentinela certa vez disse sobre a questão da neutralidade" refere-se aos Standfasters, que se separaram porque a Sociedade Torre de Vigia disse que era correto comprar ações [ou títulos financeiros] de guerra e encorajou os Estudantes da Bíblia a apoiarem o Dia Nacional de Oração pela vitória dos aliados na Primeira Guerra Mundial. A Sentinela de 15 de março de 1996 está no fundo a dizer que os Standfasters deviam ter ficado lealmente com a organização até que Jeová clarificasse o assunto.
Karl Klein, membro do corpo governante das Testemunhas de Jeová, na história da sua vida publicada na Despertai! de 22 de setembro de 1987 (página 17) mencionou o episódio deste modo:
"Pouco depois de meu batismo, em 1918, minha lealdade aos co-Estudantes da Bíblia foi posta à prova. Grassava a I Guerra Mundial, e, embora os irmãos mais destacados tivessem sido presos injustamente por causa da questão da guerra, os que estavam na liderança não avaliavam plenamente a necessidade da neutralidade cristã. Alguns que viam esta questão com clareza se ofenderam, e separaram-se dos Estudantes da Bíblia, chamando-se a si mesmos de Standfasters (Perseverantes). Eles me avisaram que, se permanecesse junto aos Estudantes da Bíblia, eu perderia a oportunidade de ser do "pequeno rebanho" dos seguidores ungidos de Jesus. (Lucas 12:32) Mamãe, embora não fosse dedicada ainda, ajudou-me a fazer a decisão certa. Não podia imaginar-me deixando aqueles com quem eu tanto aprendera, e, assim, decidi correr o risco, ficando com meus irmãos Estudantes da Bíblia. Este foi realmente um teste de lealdade. Desde então, tenho observado muitos outros testes similares de lealdade. Quando se cometem erros, os que não são inteiramente leais de coração parecem utilizar-se deles como desculpa para largarem tudo. -- Compare com o Salmo 119:165."
Reparei que, na discussão desta situação, Klein não mencionou em lado nenhum a lealdade a Jeová, lealdade ao que é correto ou lealdade à sua própria consciência. A única questão que ele mencionou foi lealdade aos Estudantes da Bíblia (como as Testemunhas de Jeová eram então conhecidas). Klein admite que foram os Standfasters quem viu esta questão com clareza.
A Sociedade Torre de Vigia ensinou durante anos que o "restante ungido" partilhou culpa de sangue pela Primeira Guerra Mundial devido a não terem permanecido estritamente neutros, e que a falta de neutralidade deles resultou em Deus permitir que eles fossem para o cativeiro em Babilônia, a Grande. Por exemplo, repare no que diz o livro Está Próxima a Salvação do Homem da Aflição Mundial! (1976), nas páginas 109-110, parágrafo 8:
"De modo similar, o restante hodierno do Israel espiritual teve de fazer algumas reformas quanto ao seu caminho e seus pensamentos, quando a Primeira Guerra Mundial terminou em 11 de novembro de 1918 e eles entraram ainda vivos no período de após-guerra, na terra. Ficarem exilados do pleno favor de Deus, no domínio de Babilônia, a Grande, estava prestes a terminar, e era o tempo correto de pensarem nas suas falhas e faltas com respeito à adoração e ao serviço de Deus. Haviam caído sob uma responsabilidade comunal por causa do derramamento de sangue e da violência da Primeira Guerra Mundial. Precisavam buscar a Jeová e invocar seu nome em oração."
Mais adiante, na página 178, parágrafo 13, o mesmo livro diz:
"Durante a Primeira Guerra Mundial, de 1914-1918 E. C., alguns do restante do Israel espiritual aceitaram serviço não-combatente nas forças armadas, e assim passaram a ter culpa de sangue por sua participação na responsabilidade comunal pelo sangue derramado na guerra. No entanto, em 1939, ano em que irrompeu a Segunda Guerra Mundial, todos os do restante do Israel espiritual e também os da "grande multidão" de companheiros semelhantes a ovelhas declararam-se a favor da absoluta neutralidade para com os conflitos mundiais, sem consideração de nacionalidade. A publicação do artigo sobre "Neutralidade", no número inglês de 1.° de novembro de 1939 de A Sentinela (fevereiro de 1940, em português), esclareceu sua atitude."
No livro Aproximou-se o Reino de Deus de Mil Anos (1975), a Sociedade Torre de Vigia estabelece outro aspecto da culpa de sangue e responsabilidade comunal. Depois de identificar o clero da cristandade com o "homem que é contra a lei", o livro diz na página 381, parágrafo 38:
"Naturalmente, o que for feito por um membro destacado deste "homem" clerical lança culpa sobre todos os outros membros da classe clerical, por concordarem com o que é feito ou por não protestarem contra isso, ou por anuírem e permanecerem na organização clerical. Todos compartilham da responsabilidade e culpa comunal pelo que um membro da classe clerical faz de modo representativo, ao falar ou agir pelo grupo inteiro."
Aqui e em outros sítios nas publicações da Torre de Vigia, a Sociedade estabelece o ensino de que quando alguém é membro de qualquer grupo, ele tem "responsabilidade comunal" por tudo o que é feito por esse grupo. Embora os livros Está Próxima a Salvação do Homem da Aflição Mundial! e Aproximou-se o Reino de Deus de Mil Anos tenham mais de 20 anos, não penso que o ensino tenha mudado neste ponto.
Na Despertai! de 8 de setembro de 1987, páginas 10-11, a Sociedade Torre de Vigia faz o seguinte apelo aos membros de outras igrejas, a seguir ao subtítulo "Se a Igreja Deixa de Agir, Agirá Você?":
"Se, depois de uma pesquisa honesta, não ficar satisfeito diante do que vê, faça mais do que simplesmente queixar-se. Um jornalista, ao comentar a declaração de Karl Barth de que uma igreja é o que são os seus membros, concluiu logicamente: "Os membros da igreja ... são responsáveis pelo que a igreja diz e faz." Assim, pergunte a si mesmo: Estou disposto a partilhar da responsabilidade por tudo que minha igreja diz e faz? Posso realmente orgulhar-me de ter a todos os seus membros como irmãos espirituais?"
Vemos assim que as Testemunhas de Jeová condenam os Standfasters e dizem que eles foram desleais, mas ao mesmo tempo exortam os membros das outras igrejas a lembrarem-se que têm uma "responsabilidade comunal" por aquilo que as suas igrejas fizeram e fazem.
Juntando toda esta informação, parece que A Sentinela de 15 de março de 1996 está a dizer que os Standfasters deviam ter permanecido leais à organização das Testemunhas de Jeová e deviam ter ficado dentro dela, mesmo quando a organização, como ela própria admite, incorreu em culpa de sangue e no desfavor de Deus por não ter sido neutra na guerra.
Dito de forma mais simples: a revista Sentinela está a pedir aos seus membros que coloquem a lealdade à organização das Testemunhas de Jeová acima da lealdade a Deus, lealdade ao que é correto e lealdade às suas próprias consciências.