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Ex-Testemunha de Jeová
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O COMEÇO DE TUDO
No princípio do século 19, um pastor batista  de New york, EUA, William Miller (nascido em Massachussets, 1782) dedicou-se ao estudo da escatologia - estudo das profecias sobre o 'fim do mundo' - buscando prever a data da segunda vinda de Cristo. A partir da leitura de Daniel 8: 14, onde se diz, "...Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será purificado", Miller reacendeu a discussão de um tema  já  bastante controvertido - a habilidade, com base na interpretação das Escrituras, de prever eventos futuros, iminentes e espetaculares. Estavam assim lançadas as sementes do que se convencionou chamar Segundo Adventismo. O movimento das Testemunhas de Jeová guarda estreita relação com esta corrente, de modo que temos de estabelecer aqui nosso ponto de partida.

A interpretação dos livros bíblicos de Daniel e Apocalipse não era algo novo nos dias de Miller. Na verdade, estes textos tinham despertado o interesse de estudiosos de religião por séculos antes dele ter nascido, o que acabou por gerar toda uma corrente (quase contínua) de teorias interpretativas, começando com aquelas do Judaísmo do primeiro século, na pessoa do rabino Akibah Ben Joseph (50 - 132 DC), e passando pelo Catolicismo medieval, a Reforma e, finalmente, o Protestantismo anglo-americano do século 19.  O primeiro estudioso cristão a fazer especulações proféticas sobre a vinda do Messias, servindo-se dos mesmos métodos de cálculo dos rabinos do primeiro século, foi Joachim de Flora, no ano de 1195 DC. Não seria o único - do início século 12 ao início do século 19, cerca de 35 autores continuariam a  especular e propor datas para o cumprimento das profecias bíblicas. De modo que Miller foi um continuador, não o criador do milenarismo - a corrente religiosa cujo cerne consiste nos preparativos para o Reino de mil anos de Nosso Senhor, mencionado em Apocalipse 20: 4. Um longo desfile de especuladores sobre o "fim do mundo" - entre eles,  Charles T. Russell - ainda se seguiria a Miller , anos no futuro, juntando-se a outras dezenas, antes dele. O conhecimento deste panorama histórico nos ajuda a compreender aquele que talvez seja o aspecto distintivo das Testemunhas de Jeová - a ênfase na escatologia milenarista - pois foi na efervescente atmosfera do período pós-millerismo do século 19 que o movimento teve seu berço.

Não é objetivo deste artigo descrever pormenorizadamente a história das interpretações de profecias bíblicas quanto à 'Segunda Vinda de Cristo'. Mencionarei apenas aquilo que julgar relevante na nossa reconstituição do panorama histórico-religioso onde floresceu a entidade que é alvo de nosso estudo. Para mais detalhes sobre o tema 'escatologia', inclusive aquela sustentada até hoje pelas Testemunhas de Jeová, recomendo a leitura da obra The Gentile Times Reconsidered [Os Tempos dos Gentios Reconsiderados], de autoria de Carl Olof  Jonsson (3a. edição, Commentary Press, Atlanta). Trata-se de obra séria e profunda, produto de mais de uma década de pesquisas. Submete o assunto ao escrutínio histórico e põe por terra mitos.


Carl O. Jonsson - a escatologia em cheque

De volta aos trabalhos de Miller, ele utilizou o princípio do "dia-ano", mencionado explicitamente na Bíblia com referência apenas aos textos de Números 14: 34 e Ezequiel 4:6. Tal método começou a ser aplicado por rabinos judeus a outras passagens e foi formalmente estabelecido como princípio pelo rabino anteriormente mencionado, Ben Joseph. Assim, Miller  "calculou" que os 2.300 dias de Daniel 8: 14 representavam 2.300 anos. Tudo de que precisava, então, era um ponto de partida. Ele adotou como tal o ano de 457 AC, data do regresso de Esdras do cativeiro. Contando, pois, 2.300 anos a partir desta data, Miller chegou ao ano de 1843 como aquele que veria o retorno de Cristo à terra. A previsão fora feita no ano de 1818. Posteriormente - em 1842 - ele publicaria um cálculo diferente, contando 2.520 anos, mas preservando  a data-chave de 1843.  Restava, portanto, pouco tempo antes que tal acontecimento extraordinário tivesse lugar. Qual o efeito de tais previsões sobre os contemporâneos de Miller?

O impacto de tal revelação foi bem além do que Miller poderia prever - crentes de diversas igrejas levaram tal previsão por demais a sério, sendo que muitos doaram suas propriedades, abandonaram suas atividades cotidianas e prepararam-se para recepcionar Jesus Cristo. No entanto, a data chegou e o tão aguardado evento não se deu. Miller, então, revisou seus cálculos e concluiu que errara em um ano, marcando o acontecimento para o ano seguinte, ou seja, 1844, mais especificamente para o mês de março. Tendo novamente decepcionado a si próprio e a seus seguidores - cerca de cem mil - Miller ainda faria uma última tentativa, marcando a vinda de Cristo para outubro daquele ano. Todavia, um novo desapontamento demoveu-o definitivamente da idéia de antever tal portentoso evento. Sobre isso, o próprio Miller escreve:

"Acerca da falha da minha data, expresso francamente o meu desapontamento...Esperamos naquele dia a chegada pessoal de Cristo; e agora, dizer que não erramos, é desonesto! Nunca devemos ter vergonha de confessar nossos erros abertamente." (O grifo é meu)
                                                                                  (A História da Mensagem Adventista, pág. 410)

Não se pode deixar de reconhecer humildade e candura nas palavras de Miller, ainda mais considerando que sua conduta, a partir de então, veio a corroborar suas palavras. Entretanto, involuntariamente, ele, por assim dizer, 'fez  escola'. Miller  acendeu um pavio que não podia apagar. Não obstante tivesse reconhecido seu erro, diversos de seus anteriores seguidores insistiram em marcar o dia para a vinda de Cristo, entre eles, os grupos liderados por Joseph Bates, Helen White e Hiram Edson, de cuja fusão nasceu a Igreja Adventista do 7o. Dia.  Como passou  Miller a encarar a escatologia que se seguiu ao seu trabalho? Ele diz:

"Não tenho confiança alguma nas novas teorias que surgiram no movimento..."  
                                                                                  (A História da Mensagem Adventista, pág. 412)

Por fim, morreu Miller, no ano de 1849, aos 68 anos de idade. Apenas três anos depois, em 16 de Fevereiro de 1852, em Allegheny-Pensilvânia, nascia Charles Taze Russell, filho do casal Joseph L. Russell e Anna Eliza Russell. O jovem Charles foi criado como presbiteriano e passou a maior parte de sua infância entre as cidades de Allegheny e Pittsburgh, no estado onde nasceu. Sua mãe o encorajou, na infância, a considerar o ministério Cristão, mas faleceu quando ele tinha apenas 9 anos de idade. Sua educação foi modesta, a partir de escolas públicas e suplementada por estudos com tutores particulares. Seu pai, um comerciante experiente, treinou o filho para ser seu sócio nos negócios, função esta que Charles passou a desempenhar já aos 11 anos, em uma loja de confecções masculinas. Nesta época, parecia demonstrar mais talento para o comércio do que para a religião. Por força das obrigações de trabalho, ele acabou abandonando os estudos aos 14 anos e tornou-se, nos próximos anos, um próspero empresário no ramo de confecções, ampliando o negócio do pai até tornar-se uma cadeia de lojas. Apesar de sua criação como presbiteriano, veio a filiar-se à Igreja Congregacional, por esta estar mais de acordo com seus conceitos na época.

A despeito de seu sucesso como comerciante, o jovem Russell manifestava fortes pendores para a religiosidade. Ainda garoto, era um devoto Calvinista, tendo chegado ao ponto de  afixar panfletos em lugares públicos, advertindo os infiéis sobre o fogo do inferno. Esperava, com isso, induzir os trabalhadores a mudarem seu estilo de vida. Agora, ao passo que Russell pertencia à Igreja Congregacional, seu pai voltara-se para o Adventismo. Aos 16 anos de idade, Russell passou a inquietar-se com relação a diversas doutrinas comumente aceitas em seu tempo. Ante a ineficácia de suas tentativas em converter 'infiéis'  às suas crenças, acabou por perder a fé na Bíblia. Contudo, não conseguiria fugir por muito tempo daquilo que parecia ser seu talento natural. Uma certa noite, no ano de 1869, um acontecimento deu novo impulso em sua vida. Caminhando pela rua de uma de suas lojas, ouviu o som de um canto, um hino religioso, o qual atraiu-lhe a atenção. De onde provinha? De um culto Adventista. O pregador nesta noite era o pastor Jonas Wendell. O próprio Russell descreve o encontro assim:

"Como que por acaso, certa noite visitei uma sala poeirenta e mal-iluminada, onde eu ouvira dizer que se realizavam cultos religiosos, para ver se o punhado de pessoas que se reunia ali tinha algo mais sensato a oferecer do que as crenças das grandes religiões. Ali, pela primeira vez, ouvi algo sobre os conceitos dos Adventistas [Igreja Cristã do Advento], sendo o Sr. Jonas Wendell o pregador...Assim, reconheço estar endividado com os adventistas e com outras denominações. Embora a exposição bíblica feita por ele não fosse inteiramente clara,... foi o suficiente, sob a orientação de Deus, para restaurar minha abalada fé na inspiração divina da Bíblia..., embora o Adventismo não me tenha ajudado em nenhuma verdade específica, ajudou-me grandemente a desaprender erros, e assim me preparou para a Verdade."
                                                                                 (Watchtower, 1906, reimpressão)

Não se pode deixar de notar um certo paradoxo em que um sermão "não inteiramente claro" e que não continha "nenhuma verdade específica" pudesse servir de alicerce para a restauração da fé de alguém. A partir daí, Russell, com apenas 18 anos, formou seu próprio grupo independente de estudos, o qual acabou por formar um movimento à parte, elegendo-o, seis anos depois, como seu "pastor".  Contudo, ele contou com a contribuição de outros dois adventistas, George Stetson e George Storrs. O primeiro era ministro do Adventismo Cristão e o segundo, ex-ministro da Igreja Episcopal e um dosfundadores do movimento 'União da Vida e do Advento' (com o qual veio a romper, tempos depois) e autor do periódico Bible Examiner [Examinador da Bíblia]. Destes dois, indubitavelmente foi Storrs o que mais influenciou as idéias de Russell.  

George Storrs tinha estado envolvido com o movimento de William Miller, já mencionado anteriormente, mas dele afastou-se após os sucessivos fracassos nas previsões para a volta de Cristo. A partir da leitura de um tratado, em 1837, elaborado por um ex-pastor batista, Storrs veio a tornar-se adepto do 'condicionalismo', a saber, a tese segundo a qual o homem não possui uma alma imortal, mas  os mortos estão inconscientes e à espera de ressurreição, sendo que imortalidade é um dom adquirido, sob a condição  de que o ser humano o  obtenha de Deus por meio de Cristo. Ele também advogava o ensino de que os mortos em ignorância, teriam uma oportunidade de se redimirem diante de Cristo por meio de uma ressurreição terrestre. Não é difícil, pois, saber de onde Russell obteve a matéria-prima para suas doutrinas da mortalidade da alma e da restauração do paraíso terrestre. É bem provável que Russell também tenha herdado de Storrs sua aversão por igrejas e organizações religiosas. Russell nãoseria o único a ser influenciado por Storrs. Há indícios que sua associação com diversos grupos religiosos - em especial, adventistas - tenha contribuído para que estes também tenham adotado a doutrina do 'condicionalismo'. De fato, ela está presente, até hoje, nas doutrinas da União da Vida e do Advento - fundada pelo próprio Storrs - da Igreja Cristã do Advento,  da Igreja Mundial de Deus e, naturalmente, das Testemunhas de Jeová.

Não se deve subestimar o grau de influência de Storrs sobre o movimento Adventista, pois, além dos aspectos mencionados, há ainda um último legado dele a Russell - a piramidologia. Em 1876,o  professor C. Piazzi Smyth - um astrônomo e piramidólogo anglo-israelita - publicou um artigo sobre este tema no periódico de Storrs,  Bible Examiner. Algum tempo depois, o próprio Storrs escreveu artigos sobre piramidologia no periódico Herald of Life and the Coming Kingdom [Arauto da vida e da Vinda do Reino]. Na sequência, o "pastor" Russell, dedicaria, em 1897, um capítulo inteiro de uma de suas obras - o volume III de Studies in the Scriptures [Estudos das Escrituras] - ao significado das medidas da Piramide de Gizé quanto ao cumprimento das profecias bíblicas. Não seria o único. Por esta época, tais crenças grassavam entre diversos seguimentos do Segundo Advento.

É também digno de nota que o próprio Russell  fala da convivência com George Storrs e Stetson como o tendo conduzido "passo a passo, a esperanças para o mundo, mais verdes e brilhantes"(Watchtower, 1906, pág. 3821). Em 9 de outubro de 1879, Stetson morreu e foi Russell quem realizou, a pedido, o sermão fúnebre. Seu falecimento mereceu, inclusive, menção na principal publicação de Russell, na qual ele se refere a seu colaborador e instrutor como "irmão de notável habilidade".

Em 1876, Russell faria um derradeiro e decisivo contato, do qual importaria mais alguns conceitos-chave que, somados aos anteriores, formariam o arcabouço de sua teoria doutrinária e a bandeira de sua cruzada missionária. Trata-se de Nelson Barbour, que, assim como George Storrs, também fora um seguidor de William Miller,  e que, agora, liderava um grupo independente em Rochester, N. York. Sua publicação, Herald of the Morning [Arauto da manhã], chegou às mãos de Russell numa manhã de Janeiro daquele ano. Os conceitos ali expressos eram:

    a) A vinda de Cristo seria invisível.
    b) Cristo já estava presente.
    c) Esta presença havia acontecido em 1874.

Nenhum dos conceitos era novo.  Já no século dezessete, Sir Isaac Newton lançou a idéia de uma "vinda invisível". Em 1856, Joseph Seiss - um pastor luterano da Pensilvânia, adepto da piramidologia - "burilou" estes conceitos, dividindo a vinda de Nosso Senhor em duas etapas, uma visível e uma invisível- idéia defendida até hoje pelas Testemunhas de Jeová. Em continuação, o cristadelfiano Benjamin Wilson, em 1844, passou a traduzir "vinda" [parousia] por "presença", em sua tradução da Bíblia, conhecida como Emphatic Diaglott. Um leitor das publicações de Barbour chamou-lhe a atenção para este fato e, a partir daí, ele adotou esta doutrina definitivamente.

Quanto a 1874,  Barbour não deduziu tal data sozinho, mas com base em um artigo da obra Horae Apocalypticae, de autoria de Elliot, encontrada na biblioteca do Museu Britânico, em 1860. Mais adiante, examinaremos alguns pormenores deste assunto.

Assim sendo, em 1876, Barbour, quase 30 anos mais velho - com a mente repleta de idéias aparentemente herdadas de seu antigo mestre, Miller - foi convidado a um encontro com Russell, o qual aconteceu pouco depois em Filadélfia. Sobre este encontro, Russell falaria, mais tarde: "...Ele veio e a evidência me satisfez".  Assim, ao final da reunião, o mais velho, Barbour, conseguiu convencer o mais moço, Russell, da correção de seus cálculos escatológicos.  A partir daí, Russell, o qual tinha - segundo suas próprias palavras - "desprezado a cronologia por causa do uso errado dela pelos adventistas", ironicamente assumiu ele próprio, com base nas idéias de um adventista - Nelson Barbour - o "timão" do velho barco pilotado por William Miller, quase 60 anos antes dele, e naufragado há mais de 30 anos.


G. Storrs e N. Barbour - As maiores influências de Russell


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